A 'via verde' para o cancro
A presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO), Ana Raimundo, defende a criação de uma 'via verde' no tratamento do cancro e a libertação dos médicos de família no acompanhamento da COVID-19 como estratégias contra o aumento da mortalidade.
"Os médicos de família devem ser libertados desse trabalho ligado à COVID-19 para os centros de saúde para fazerem as consultas aos seus doentes. Depois, no caso dos doentes oncológicos, devia haver nos hospitais a 'via verde' oncológica", afirma a dirigente da instituição, que alertou para a redução drástica do número de novos diagnósticos e de primeiras consultas em oncologia com a chegada da pandemia a Portugal.
Os números de um inquérito promovido pela SPO aos serviços de oncologia médica de todo o país, apresentado este domingo no 17.º Congresso Nacional de Oncologia e que avaliou o impacto inicial da pandemia em Portugal entre março e abril, apontaram para uma quebra de 60 a 80 por cento dos novos diagnósticos de cancro. Para Ana Raimundo, o impacto desta realidade será bastante visível dentro de alguns anos.
"Estes diagnósticos que não são feitos em tempo útil serão feitos mais tarde e em fase mais avançada de doença, portanto, com menor potencial de cura e tratamentos mais complicados. Podemos prever que, sendo estes tumores diagnosticados em fases mais avançadas, vá haver dentro de três, quatro ou cinco anos um aumento da taxa de mortalidade por cancro", explica.
Sublinhando a sua preocupação com o que ocorre "a montante dos hospitais", a presidente da SPO enfatiza que muitos dos diagnósticos passavam pelos médicos de família nos centros de saúde e que, por isso, devem deixar de ser "desviados para os serviços COVID" e retomarem o acompanhamento dos seus doentes. "Não estão nos centros de saúde, não fazem as consultas, nos doentes com suspeita de diagnóstico não são pedidos os meios complementares e, portanto, não é feito o diagnóstico", sintetiza.
Consequentemente, a criação de uma 'via verde' para o cancro que permita agilizar o tratamento de doentes em tumores mais agressivos e de rápida evolução pode, no entender de Ana Raimundo, ser importante no combate à doença e já levou inclusivamente a ideia até aos diferentes partidos políticos.
"Nós já tivemos algumas reuniões com grupos parlamentares para demonstrar esta nossa preocupação com este atraso de diagnóstico de cancros, e também estamos em articulação com a coordenação nacional para as doenças oncológicas, um órgão consultor do Ministério da Saúde. Acham uma ideia interessante", confessa, embora a sua execução prática tenha um prognóstico mais reservado.
Sociedade Portuguesa de Oncologia defende teleconsultas no apoio aos doentes
A SPO valorizou ainda a aposta na teleconsulta para manter o acompanhamento dos doentes oncológicos no contexto das restrições impostas pela pandemia de COVID-19, evitando um adiamento massivo de consultas. Em entrevista à Lusa, a presidente da SPO, Ana Raimundo, destacou também que “menos de 10% das consultas de follow-up foram adiadas”.
De acordo com um inquérito aos serviços de oncologia médica de todo o país, apresentado este domingo no 17.º Congresso Nacional de Oncologia e que avaliou o impacto inicial da pandemia em Portugal, entre março e abril, quase 60% dos serviços inquiridos “tiveram um crescimento de 30% das teleconsultas face ao volume total”.
“No caso de oncologia, considerada uma doença crónica e em que, normalmente, o médico assistente já conhece o doente, as teleconsultas funcionam bastante bem. O ‘feedback’ foi muito positivo por parte dos doentes, que se sentiram seguros pelo facto de não terem de se deslocar ao hospital, e pelos próprios profissionais, que conseguem fazer uma avaliação do estado do doente de forma eficaz”, afirmou.
O estudo abrangeu 21 unidades, com 52,4% a pertencerem a um hospital central do Serviço Nacional de Saúde e 71,4% num serviço integrado numa instituição dedicada a covid-19, avaliando somente o funcionamento dos serviços de oncologia médica, no qual, segundo Ana Raimundo, “os doentes que já tinham o seu diagnóstico e que já estavam em tratamento ou seguimento pelos serviços de oncologia não sentiram um grande impacto [com a pandemia]”.
A líder da SPO destacou também a estabilidade ao nível dos recursos humanos destes serviços, sem recrutamento de mais elementos ou uma saída significativa de profissionais para colaborar no apoio à resposta à COVID-19, uma situação que diz manter-se no decurso da atual segunda vaga da infeção pelo novo coronavírus.
“Provavelmente, serão dos últimos elementos médicos a serem recrutados, devido às características dos doentes que seguem, e serão recrutados já numa situação extrema, em que já foram todos os outros profissionais recrutados, porque a taxa de mortalidade por cancro é superior à taxa de mortalidade por COVID-19”, notou.
A maior taxa de mortalidade do cancro pode também estar refletida no aumento da mortalidade extra-COVID em Portugal durante 2020 face à média dos últimos anos.
A presidente da SPO admitiu que “existem alguns cancros de evolução mais rápida e agressiva que, se não forem diagnosticados atempadamente, matam rapidamente”, mas notou que esta realidade se deve a outras patologias crónicas.
“Esse aumento da taxa de mortalidade tem sobretudo a ver com a falta de seguimento e controlo das doenças crónicas, como as doenças cardiovasculares, a diabetes ou as doenças respiratórias crónicas. São doentes que deixaram de ter um seguimento e apoio em tempo útil e também doentes que adiaram a sua ida ao médico e aos hospitais com medo”, frisou.
Outra das consequências da pandemia em termos oncológicos teve lugar no recrutamento de novos doentes para ensaios clínicos.
De acordo com Ana Raimundo, o “recrutamento de novos doentes aproximou-se de zero” e mesmo com o reatamento da maior parte dos ensaios clínicos a partir de junho “não houve um restabelecimento a 100%”.
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